domingo, 22 de janeiro de 2017

Crônicas de Verão - I

Numa destas noites de janeiro, sob um calor infernal, se foi a luz.
Não estava chovendo nem ventava; do nada, desligaram a rede, e ficamos sem energia por mais de hora.
Num primeiro momento, me apavorei, pois mal havia caído a noite.
Suor e orquestra de mosquitos, seria esse o roteiro?
Fiquei alguns minutos praguejando baixinho contra tudo e contra todos pois, sem luz e com uma temperatura de 34 graus não se pode pensar em nada agradável.
Estava sozinha em casa, fator que só serviu para piorar a situação; não podia sair para o pátio, eis que sou medrosa ao extremo.
Na verdade, não é bem assim: não me sinto segura em meio à escuridão, ou quando não posso enxergar.
Essa é a questão.
De tal sorte que tive que me contentar em espiar o céu de verão através da janela.
Por alguns momentos, permaneci muito quieta, trocando olhares com as estrelas.
Elas estavam todas lá, cintilantes, parecendo acenar  para mim...
Então, operou-se a magia: levada por elas, refiz o caminho das noites de verão de minha infância, quando tinha meus pais e meus irmãos, tios e tias, primos, avós, cachorros, passarinhos, galinhas, e o pátio da nossa casa que, de dia, era sombreado pelos cinamomos e flamboyant,  perfumado pelas uvas da parreira e à noite, ficava iluminado por centenas de vaga lumes.
Era um espaço de encantos, como costumam ser os lugares onde o amor é a tônica.
O meu Pai, sempre prático e com uma vitalidade que não terminava e nunca terminou até seu último dia nesta Terra, trouxera da estância uns catres que, como sabem, são camas rústicas feitas de madeira e cobertas por uma lona espichada e presa, por baixo, com grandes tachas.
O pai trouxera aqueles catres alegando que, para dormir não existia lugar mais agradável, eis que a lona que servia de colchão era de algodão, extremamente fresca.
Não aquecia nem com o calor do corpo.
Pois bem.
Os tais catres ficavam guardados na despensa, encostados na parede até que começava o verão, momento em que entravam em cena.
Primeiro, havia que abri-los e deixar que ficassem por um par de dias ao relento, a fim de que o cheiro do inverno fosse embora.
Feito isso, começava a distribuição dos mesmos, para meus pais e irmãos, e para mim.
Nós ajudávamos a carregar aquelas camas pesadas escada acima, e lá, umas ficavam no quarto, outras, na varanda, e assim era.
O verão do nosso Itaqui sempre foi quente, e aquilo era uma espécie de paliativo para enfrentá-lo.
Naqueles tempos - 1967, 1968, por aí, havia em nossa casa apenas um ventilador, bem pequeno, um luxo que somente meus pais podiam desfrutar.
A nós, os filhos, tocava dormir sem vento algum, salvo o que soprava - quando soprava das janelas abertas, sim senhor, dormíamos com as janelas do segundo andar escancaradas, abafados sob os mosquiteiros....era isso, ou acordar petit pois, em razão das mordidas.
Meu Pai, nos dias mais quentes, à tardinha, anunciava:
" Hoje está demais o calor! Vamos carregar os catres para o pátio!"
Iniciava-se, então, uma grande operação: subir as escadas, fechar os catres, descer com eles, subir novamente, descer com os mosquiteiros, levá-los até o meio do pátio, abri-los, colocar o lençol, ajeitar o mosquiteiro e pronto, estava feita a cama.
Não tínhamos medo de nada!
Aliás, quem pensava nisso?
Em torno de 23 horas, todos íamos dormir, cada um no seu catre.
O silêncio reinava, interrompido apenas pelo farfalhar da brisa nas folhas dos cinamomos, dos grilos, de alguma rã coaxando...lembro-me tão nitidamente de tudo isso que não, não se passaram quase cinquenta anos de toda aquela felicidade!
Meus olhos observavam as estrelas e os vaga lumes e, talvez dali a um ou dois minutos, eu dormia.
Dormia o sono maravilhoso daqueles que amam e sabem que são amados.
Acordava com a voz do pai a dizer " vamos entrar, pois já clareou o dia".
Noites de encantamento que jamais esquecerei.
Hoje penso em todos os caminhos que precisei percorrer depois que eles foram embora: nem com minha casa fiquei, nem pátio, nem parreira, nem meus cinamomos, tudo virou deserto, sinônimo de abandono, desamor e aridez.
No entanto, cada vez que,  à noite,  olho para o céu, consigo enxergar as mesmas estrelas, dizendo-me que há coisas que são incorruptíveis: o que trazemos guardado no peito, na alma, no coração, a essência do que somos e o amor que vivemos, jamais nos deixam.
Nas noites mais escuras, estão ali para nos recordar que não há separação e nem distância, pois o
amor entre pais e filhos é um elo fantástico, onde o puro afeto, e não o tempo, é o senhor absoluto.
Voltou a luz!
Elétrica...
E magia foi embora, seguindo o rastro brilhante das estrelas.