quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O Túnel Estreito

Até a terceira sessão de quimio, ou seja, a metade do tratamento, eu estava indo muito bem.
Valente.
De repente, um belo dia, quando saí para almoçar, já na calçada senti uma sensação estranha: que lugar é este? o que estou fazendo aqui? Por que estou aqui?
Mas decidi prosseguir, subi na lotação e desci na frente do restaurante, onde tinha marcado com minha filha Karina.
Então, comecei a chorar e não parei mais.
Não conseguia.
Lembro que sentei num bloco de pedra pintado de branco, posto na calçada a título de banco, e ali fiquei, repetindo: eu quero ir pra casa; eu quero ir embora pra casa; me leva pra minha casa.
Senti uma saudade tão avassaladora de Itaqui e do meu gato Bibo que, lá pelas tantas, qual disco arranhado, as frases se resumiram a: me leva pra Itaqui, eu quero ver o meu Bibo, preciso ver o meu Bibo, me leva pro meu Itaqui!
Foi brabo!
Não sei como cheguei até o hospital, recordo que minha filha estava comigo, meu genro Pedro e, a partir dali, entrei num túnel estreito chamado transtorno de ansiedade dissociativa, assim me diagnosticaram.
Passei a sentir medo de tudo, até de tomar banho.
E se eu caísse no banho?
Fazia o impensável, em se tratando de Porto Alegre: deixava a porta do apartamento sem passar a chave.
Ia até o supermercado comprar pão todos os dias - eu, e meus hábitos interioranos, e sentia medo de passar mal, e um dia, realmente passei, comecei a suar muito, apesar do frio, e pedi ajuda.
O shopping Iguatemi, que adoro, me pareceu, de repente, claustrofóbico: muitas pessoas, muito barulho, muitas luzes.
Definitivamente, estava enlouquecendo, era o que eu pensava.
E chorava, com pena de mim.
Chorava de saudades de mim.
Por onde eu andava?
Todas as manhãs, tomando mate, que por sorte não enjoei, me perguntava: afinal, o que era aquilo que eu sentia?
Daquele tempo, que começou em agosto, até o final do tratamento, os dias foram complexos.
Demorei para entender e, sobretudo, aceitar, que não podia me curar sozinha, precisava do auxílio valioso da muletinha, como me disse carinhosamente o médico, algo temporário, sim, mas fundamental para minha qualidade de vida e dos que me cercavam.
Nunca gostei de tomar remédios, mas minha rebeldia cedeu lugar à razão, pois  não quero mais, Deus me guarde, nunca mais quero sentir o que senti naquele dia de agosto no qual, numa calçada de Porto Alegre, me perdi de mim mesma e de minhas referências, também elas, desaparecidas.
Meu corpo, a primeira delas que sumiu.
Acreditem, amigos, acho lindo ser gorda, e eu estava(e ainda estou) magra, e aqueles ossos saltados, cruzes, que coisa mais feia!
A vida em compasso de espera, contados, os dias, entre uma sessão de quimio e outra.
Vinte e um dias.
Frequentava uma ONG, fazia uma que outra tarefa, caminhava, mas fazia tudo inventando uma  vontade que estava longe de sentir.
Aquela pessoa medrosa e apavorada que se assustava até com o barulho da tampa da chaleira caindo não era eu.
Passados dois meses do final do tratamento, o pânico e o medo decidiram ir embora.
As  pequenas vitórias e conquistas diárias, somadas, foram trazendo a sensação de retorno à normalidade e ao meu cotidiano simples, me adicionando força.
Não preciso mais pintar as sobrancelhas nem os cílios: de uma dia para o outro, eles reapareceram!
O cabelo está crescendo e, embora sua falta não tenha me afetado, não posso negar que fico feliz quando me olho no espelho e vejo que ele vem voltando.
A travessia daquele túnel estreito, onde me debati durante meses, cheia de temores, chegou ao fim.
Saí para a luz do amanhecer que chegava, carregado de promessas, e corri para me abraçar.