quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Cicatrizes

 Mutilada.
Assim me senti, num dia qualquer daquelas " semanas de anos".
Pelo tempo comum,  do dia 7 de janeiro até o dia 25 de setembro de 2018.
Pensava em tudo que eu não tinha mais dentro de mim, e que precisou ser retirado.
Melhor não pensar.
Há fatos que são tão complexos que a mente decide: não!
Mas eu me refiro, na verdade, às marcas físicas e emocionais, às cicatrizes que ficaram.
Marcas de guerra.
Nunca, em tempo algum, me revoltei.
Apenas me perguntava: onde terei errado?
Para logo após entender que não era essa a pergunta e, sim, " o que é que eu preciso aprender?"
O que é que eu preciso enxergar e começar a praticar, o que é que eu preciso mudar?
Pois antes de tudo, eu era um ser pedante e cheia de mim.
A tal ponto que ignorava o sofrimento alheio, por puro comodismo: era mais fácil ficar sentada no sofá que sair para secar as lágrimas de um amigo, ou cuidar de um doente.
O que é que eu preciso aprender?
A romper o casulo do meu egoísmo e ir ao encontro do outro sem que ele me chame, vou porque preciso aprender a ser solidária.
O que é que eu preciso enxergar e começar a praticar?
Os sentimentos do outro, a vida do outro, as angústias do outro, e praticar a  paz, a serenidade, o perdão, a paciência que nunca tive, e, novamente, a solidariedade, o tentar estar no lugar do outro.
O que é que eu preciso mudar?
Infinitas coisas.
São mudanças estruturais, daquelas que a gente faz quando, por exemplo, havido um terremoto, nossa casa é destruída e poucas coisas sobram.
Assim me sinto, amigos.
Um terremoto passou pela minha vida e fez terra arrasada, arrastando todas as inúteis quinquilharias que  acumulei e que de nada me serviram quando me vi frente a frente com minhas cicatrizes: as físicas, e as da alma.
Estas últimas vieram todas à baila, e me impuseram: muda! aprende! enxerga! pratica!
As cicatrizes físicas, marcadas na pele, literalmente,  ficaram para contar a minha história, e não tenho problema algum com elas pois, de alguma forma, me fazem lembrar, todos os dias que minha fé e minha coragem, o terremoto não derrubou.








Nossa Senhora de Guadalupe

Tudo o que eu puder dizer sobre Nossa Senhora de Guadalupe será pouco.
Ínfimo, haja vista os tantos milagres que realizou em mim.
Não há como duvidar, embora, muitas vezes, o demônio tenha vindo me assoprar, zombeteiro e cheio de si, que nada daquilo era verdade.
É que nós, seres humanos, e eu, principalmente, sou muitas vezes como São Tomé, preciso ver para crer.
O que não deixa de ser um absurdo e uma falta de fé.
Em todo o percurso do deserto que atravessei e ainda atravesso, eis que daquele tempo ficaram resquícios e ainda não os curei de um todo, nada teria sido possível sem a fé que me amparava.
Uma fé fraca, eu diria.
Mas tudo o que eu pedia, e peço, é que jamais, em tempo algum, Deus permita que eu perca a fé.
Que não se aparte de mim a energia dos seres de luz,  pessoas de carne e osso iguais a nós, que andaram por esta Terra, mas foram tocados pelas Divinas Mãos, e operaram milagres.
Eu fiquei tão abismada com o que me aconteceu que até o presente momento ainda me encontro bastante perdida, pois se antes do diagnóstico e de seus desdobramentos havia uma Lia, agora emerge outra, e esta, nem eu mesma sei muito bem quem é.
Estamos nos reconhecendo lentamente, ela eu eu.
A começar pela figura que vejo no espelho, a qual não traduz o que eu era há um ano.
Dez quilos mais magra, com uns parcos fios de cabelo - brancos, as orelhas parece que dobraram de tamanho, e as rugas se multiplicaram.
Procuro não olhar para minhas fotos de antes, ainda não estou preparada.
Quando conseguir juntar as duas Lias, terá havido a superação.
Por enquanto, estranho muito ter que pintar as sobrancelhas todos os dias, e os poucos cílios que sobraram.
A cor, entretanto, está voltando.
Tão difícil quanto enfrentar a quimioterapia é desbravar o caminho que se abre após o final do tratamento.
Tudo está tão diferente, a começar por nós mesmos, que é um exercício complexo recomeçar.
De onde?
Qual o ponto?
Para onde vou?
Enfrentar os medos que nos rondam, cada um aprenderá, certamente, a melhor forma.
A família ajuda, os amigos ajudam, os conhecidos ajudam.
Todos procuram te amparar, e externar sua solidariedade e afeto.
Mas nosso eu interno, aquele eu que se quebrou todinho, que se viu reduzido a nada, esse é o que precisa ser reconstruído todos os dias, devagar, lentamente, com infinita paciência.
Não há fórmula para isso, nós mesmos precisaremos descobrir qual a alquimia, a magia que nos fará nascer outra vez.
Nossa Senhora de Guadalupe, da qual minha Mãe era devota e, devo confessar a vocês, não sei como essa devoção chegou até mim, a Ela tenho recorrido, juntamente com Nossa Senhora Aparecida, com Santa Rita de Cássia, com Santo Antônio, com São Miguel Arcanjo.
São Eles que, nas horas negras e de muita aflição, de uma forma ou de outra, me respondem.
Estive no fundo de um poço e hoje, quando olho para trás - exercício que procuro não fazer, pois me deixa ruim, vejo como, em todos os momentos, tive as Mãos sagradas de Nossa Senhora a me amparar, a não me deixar só.
Assim como em outra situação dolorosa de minha vida ocorrida há muitos anos, Santa Teresa de Jesus me resgatou, desta vez, Nossa Senhora de Guadalupe está aqui, presença constante e amorosa.
O tempo vai passando e a sensação de que aquele tempo está ficando cada vez mais distante,  cada dia se torna mais real.
Tenho contado com o valor inestimável dos médicos, de psicólogos, de amigos maravilhosos que me pegam no colo e me cuidam, me mimam, me transmitem força e energia do bem.
O que seria de nós, meus amigos, sem amor?
Ao lado dos medicamentos tradicionais, o amor é um bálsamo poderoso, pois cura e restaura nossa alma, recolhendo, conosco, os pedacinhos partidos.
Gentilmente, a ternura que só os que amam conhecem vai nos ajudando a  formar um desenho novo, um quadro cheio de cores e de muitas histórias, marcas, cicatrizes e vivências.
Essa trajetória, sob os raios luminosos de Nossa Senhora de Guadalupe, tem como guia maior a fé, norte dos caminhos a seguir, bandeira que devemos erguer bem alto, para que todos saibam que, sem fé, e sem amor, nossa vida não tem sentido.