sexta-feira, 23 de maio de 2014

Lustrando as Botinas

Todo santo dia, meu Pai retirava de um pequeno armário seus sapatos, que os tinha em profusão mas sempre nas mesmas cores, marrom e preto, nem o modelo variava muito, passava a mão em uma latinha, uma flanela e uma escova, enfileirava-os na beirada de um poço que havia no centro do pátio de nossa casa, em desuso e transformado em canteiro de flores pela minha Mãe, e começava a lustrá-los, um a um.
Era uma tarefa que ele adorava realizar,e assim que me via, gritava, " China querida, vamos lustrar as botinas?", e soltava uma de suas típicas gargalhadas.
Eu deveria ter meus 6, 7 anos e, sentada numa cadeirinha de balanço, observava meu herói assoviar alegremente enquanto dava início aos trabalhos: primeiro, uma limpadinha rápida em todos os sapatos, para tirar a poeira; logo a seguir, passava a graxa, uma camada generosa, aliás, verdadeiras plastas para só então voltar-se para mim e dizer, " Agora, Chininha, vamos esperar que seque para depois lustrar".
E saía, bem campante, pátio afora, cantarolando.
Para cada afazer o Dr. Edgard  tinha um ritual, e para tudo me chamava, queria que eu compartilhasse com ele suas alegrias simples, desde a de barbear-se para  depois passar Água de Quina Pinaud, um líquido vermelho vivo que vinha dentro de uma garrafinha, com um cheiro do qual lembro até hoje, carregar as lenhas para o fogo da lareira, que somente ele sabia fazer e mais ninguém, acomodando os troncos de um jeito tal que logo começavam a estalar, fazer o mate...ah, a hora do mate! Das  tantas coisas que me trazem uma saudade boa - se é que existe isso, é das horas em que ficávamos sentados na cozinha ele, eu e a mãe, sorvendo aquele doce amargo e conversando fiado.
Voltando aos sapatos, era hora de " dar o lustro", a graxa estava seca e então, de escova em punho, ele começava a lustrá-los até ficarem um espelho de tão brilhantes. Observando aquela fila de sapatos, olhava-me e falava, " Minha filha,  teu Avô Atílio me ensinou que um homem se conhece pelos sapatos, e pelos dentes - entendeu, Chininha? "
Sim, Pai, entendi.
Tanto entendi que hoje, em razão do frio, enfileirei  as "botinas" na calçada do meu pátio e comecei a  lustrá-las.
E lá pelas tantas, quando dei por mim, assoviava, alegremente.



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